Em 1987, estávamos reunidos em Salvador, na Comissão de Acompanhamento dos Trabalhos da Constituinte do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras-CRUB. À noite o então governador da Bahia, João Durval, ofereceu recepção no Palácio de Ondina. Na oportunidade, avistei o professor Josaphat Marinho, do Mestrado em Direito, da Universidade de Brasília, e o então bispo-auxiliar da cidade, dom Boaventura Kloppenburg. O conhecia pelos livros da Editora Vozes, voltados para o combate de crenças divergentes da teologia católica. No terraço do Palácio, obsequiados pela deliciosa culinária baiana, pude com ele manter interessante diálogo. Depois veria, algumas das suas colocações tinham tom profético.
Comecei por provocá-lo, dizendo que na Boa Terra dispunha de farto material para a reflexão do sincretismo religioso, sobretudo, dos cultos africanos, por lá muito prósperos. O franciscano admitiu, logo passando a explicar a posição da Igreja, através das comunidades eclesiais de base, sustentadas pela teologia da libertação nas últimas décadas, sustentáculos dos movimentos sociais no interior do Brasil. Eles convergiriam para a atuação nos trabalhos da Constituinte que se instalara em Brasília, por conta dos acordos que permitiram a eleição da chapa Tancredo-Sarney, indiretamente no Colégio Eleitoral. Os movimentos sociais e boa parte de suas reivindicações foram recepcionadas pela Carta político-jurídica que seria promulgada em 5 de outubro de 1988.
Ao lado disso, nas grandes cidades, progrediam as igrejas evangélicas, principalmente as pentecostais, com as teologias da prosperidade e as redes de proteção social aos fiéis. Prosperaram em adeptos e recursos financeiros, adquirindo canais de rádio e televisão, jornais e revistas. Estavam sendo bem-sucedidos na competição da mídia. Dom Kloppenburg atento a esse desempenho, profetizou: eles organizarão bancadas, elegerão prefeitos e governadores e poderão chegar à Presidência da República.
Decorridos mais de trinta anos daquela conversa no terraço do Palácio de Ondina, constata-se que muitas das profecias do bispo-auxiliar de Salvador estão se cumprindo. As causas são múltiplas: não houve estratégia específica para os centros urbanos maiores, de parte da Igreja Católica; sua teologia bastante racional, firmada nos pressupostos de Aristóteles e São Tomás de Aquino, com frequência não é compreendida por essas populações.
Em dezembro do ano passado, a plataforma Netiflix lançou o filme dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles, com o título “Dois Papas”, abordando a diferença entres os cardeais Joseph Ratzinger, o Bento XVI; e Jorge Mário Bergoglio, Francisco. O primeiro, lidimo representante da ortodoxia teológica, intelectual, acadêmico. O segundo, jesuíta, homem de fé, formado na disciplina de sua ordem religiosa, criada como organização paramilitar, para travar o combate aos inimigos da Igreja Católica e do Papa. Apesar de o roteiro conter peças de ficção, muitos dos fatos narrados foram extraídos do livro “O Papa Francisco- Conversas com Jorge Bergoglio”, de Sérgio Rubim e Francesca Ambrogetti. Os dois entrevistaram longamente o Cardeal de Buenos Aires. De hábitos simples, gosto popular pelo futebol, pelo tango, mostrou-se como o pastor do amor, do diálogo, da comunicação. Provocado pelos entrevistados, esclareceu o discutível episódio em que intercedeu junto a membros da ditadura militar para salvar a vida de dois jesuítas sequestrados pelo regime. Agiu como provincial da Companhia de Jesus, cumprindo as suas regras.
Na prática, revelou-se flexível, pouco dogmático, para atingir os seus objetivos, como convém a um jesuíta. O padre Vieira, dizia, para atingir os fins da fé, conversarei até com o demônio. E o que isso tem a ver com o Direito? Sabemos que Direito e religião nasceram juntos. Foram os romanos que operaram a separação até hoje não concluída. Nos dois, a questão fundamental é a interpretação, devendo-se afastar em ambos, a inflexibilidade dogmática, buscando através dos diálogos colocá-los a serviço do ser humano.