28/03/2020

UMA ÚLTIMA CRÔNICA?

Autor: DANIEL BLUME Advogado, Conselheiro Federal da OAB pelo Maranhão.

Não é mais manhã dos mesmos domingo. O sol brilha nas ruas vazias, em um verde deserto à beira-mar. Foram-se as pessoas, com seus sorrisos, cumprimentos e abraços. Todos trancados onde residem, enquanto as piores notícias soam nos celulares.

Um instinto de auto preservação nos apega às máscaras e ao álcool em gel. Em prisão domiciliar, poucos se tocam e muitos se falam com dedos na internet. O cotidiano virou uma aversão física entre uma higienização e a próxima.


Nos arriscados mercados, um pigarro parece contravenção, enquanto olhos desconfiados evitam se fitar. Estoque de comida é algo que se pode fazer, apesar da racional desnecessidade. Assim se evita o tédio da permanência em casa, o qual é um luxo se lembrarmos daqueles que moram nas ruas, ou dos que estão agarrados à vida por um aparelho respirador.
Vários dizem, poucos ouvem e alguns não entendem este grave momento, em que a raça humana se defronta com uma coroa distinta da que ostenta, há milênios. Falo não apenas do reinado do homem sobre os demais animais da Terra, pois também trato da própria sobrevivência de nossa espécie.


O Coronavírus não somente tirou a humanidade da sua relativa zona de conforto, travou o mundo. Não por uma luta entre povos, mas defronte de um ser invisível, que atinge do oriental ao ocidental, da criança ao idoso, do pobre ao rico.


A mazela chegou como uma chuva medieval. Chuva de flechas incandescentes na madrugada. Apareceu na China e arrasa a Europa. Na Itália, falecem média de quinhentas pessoas por dia. Nunca se reviu tantas perdas em tempos de paz.


De repente, um simples abraço se transforma em ataque, ante a ameaça da doença que avança junto ao medo. Uma realidade distante e inverossímil está conosco. Corroí-nos com toques de recolher, corridas por mantimentos, quarentenas, instruções médicas, doentes, escassez de leitos hospitalares, e mais mortes.


Em um mundo de economia acelerada/urgente, é hora de se perder tempo e dinheiro para se ganhar a vida. A questão é que essa desaceleração tem um devastador efeito colateral. Falo dos desempregos em massa, decorrentes da quebra das empresas, hoje com minúsculo ou nenhum faturamento. Tal consequência é imediata nas pessoas jurídicas individuais e nas microempresas, cujos titulares sobrevivem de um combalido capital de giro, acossado pela pesada carga tributária. Portanto, a peste já se encontra disseminada na economia, o que se agrava com a ampliação da quarentena.
No Brasil, o COVID-19 chega para engrossar o caldo de uma crise política sem parelha. O país está partido por uma dicotomia resgatada dos anos oitenta. Reciclou-se uma guerra fria entre esquerda comunista e direita conservadora: uma disputa maniqueísta por poder entre vermelho e verde/amarelo.


Aqui e ali, há políticos imponderados que, neste período, travestidos de vestais, bradam para recrudescer o combate político bipolar. Falam em “impeachment” presidencial, como se o povo brasileiro não possuísse problemas suficientes. Enquanto a humanidade peleja pela sobrevivência, não há espaço para “impeachment” dos inconsequentes de parte a parte.
Na Índia, por exemplo, as pessoas que desafiam a quarentena são punidas fisicamente com agachamentos e conduções coercitivas. Em outros países, há multa por passeios no parque ou caminhadas na praia.


A contenda biológica que a humanidade enfrenta mitiga o próprio direito supremo à liberdade. Afinal, através de um juízo de ponderação, ir e vir estão aquém da vida. Em tempos de Corona, o inimigo invisível está à solta, enquanto suas potenciais vítimas permanecem presas, como nas blitz alemães aos londrinos. Na Segunda Guerra, muitos perderam suas vidas, porém a resistência venceu.


Uns médicos falam de simples gripe, outros de uma pneumonia abrupta, ao passo que sucessivos decretos governamentais são anunciados nas redes sociais. Políticos buscam gravar seus nomes na história como Winston Churchill, enquanto cientistas cavam por uma sorte de penicilina, do Nobel Alexander Fleming.


Acolá, fala-se em desnecessária histeria coletiva. Aqui, diz-se que a situação está controlada, apesar de preocupante. Do otimismo ao pessimismo, do equilíbrio ao desespero, o fato é que paira sobre nós uma evidente inexatidão.


O mundo é marcado por pestes que dizimaram milhares. Defrontou-se com varíola, tifo, gripes espanhola e aviária. Porém, o COVID-19 chegou com uma rapidez abrupta e se disseminou com a velocidade do som. Revelou que a globalização não é um fenômeno relacionado apenas à cultura, à economia e às comunicações.


Atualmente, também as doenças se tornam rapidamente globais, haja vista as múltiplas conexões mundializadas de transporte. Logo, merecem total respeito e cuidado, pois ratificam a fragilidade humana.
Com a moléstia, tornamos às cavernas. É preciso ficar em casa, por mais difícil que seja suportar o refúgio. O cenário é de uma batalha biológica contra um inimigo que pouco se conhece e que não se pode ver.
É possível que a passagem deste mal sirva para reconectar os homens as suas origens, as suas famílias, a sua própria natureza humana. Falo das refeições em casa, da conversa despretensiosa, do olho no olho, mesmo que sem toques.


A fé revela que a inexatidão nos conduz para tempos melhores de resgate e recomeço, muito embora as notícias falem do nosso fim. O certo é que o futuro da humanidade não está sob o controle da soberba humana, que ostenta uma efêmera coroa à mercê de pandemias.
Talvez esta seja a última crônica que escrevo, ou a última que você lê. Sob a perspectiva da sobrevivência, espero que não. Mas, com certeza, esta é a última que redijo neste mundo que jamais será o mesmo, depois do vírus.

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