30/09/2019

Autobiografia Precoce

Autor: João Batista Ericeira sócio majoritário de João Batista Ericeira Advogados Associados

Após a morte de Stalin, na União Soviética, o poeta Eugenio Evtuchenko, lançou a “Autobiografia Precoce”.  Causou enorme rebuliço, colaborou para a ampliação das denúncias dos crimes praticados pelo ditador constantes do relatório apresentado pelo Secretário Geral do Partido Comunista, Nikita Kruschev.

O poeta Evtuchenko, nos idos dos anos sessenta do século passado, dizia que a poesia tem apenas um compromisso: com a verdade dos seus sentimentos. Por essa e outras razões, Platão recomendou a expulsão dos poetas da sua República. Eles causariam muitos problemas aos detentores do poder político. Semana passada, o ex- Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, provocou algazarra, ao relatar que tivera instintos homicidas em relação ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal, de quem divergira acerca de interpretações das denúncias em casos da Lava Jato.

Não era apenas de desinteligência hermenêutica. Os dois, colegas no Ministério Público Federal, mantinham relações pessoais até porque prestaram o mesmo concurso público. Mas ao longo das discussões dos casos da Lava Jato, Janot, mencionou a esposa de Gilmar, como integrante de escritório de advocacia da defesa de acusados da mesma operação. Enquanto Gilmar referiu-se a filha de Janot como membro do Departamento Jurídico de empresa envolvida em casos da Lava Jato.

Os sentimentos familiares das duas autoridades sentiram-se atingidos por citações que nada tinham a ver com o mérito processual em andamento. Não me consta que Janot seja poeta, mas o seu livro biográfico pretende dar a versão ou a sua verdade acerca de fatos e personalidades envolvidas em processos de sua responsabilidade.

Há aspectos a examinar no comentado episódio. Integra a teoria jurídica a escola liderada por Rudolf Von Ihering, autor do clássico “A Luta Pelo Direito”, segundo ela, quem move o mundo jurídico são os interesses. Ninguém nessa seara age desinteressadamente, o móvel pode ser mais poder, dinheiro, status, reconhecimento, ou qualquer outro bem social.

Para nós da advocacia, é cristalino, representamos os interesses das partes, mas também é claro que o mesmo pressuposto se aplica aos demais atores do mundo do Direito. Aos juízes, ao ministério público. Que são movidos pela ampliação do poder, por promoções e outros interesses.  Torna-se indispensável separar os interesses pessoais dos institucionais, estes últimos devem prevalecer na esfera do Direito público.

É universal a crise das instituições, mas no caso brasileiro ela se agrava por herança histórica e pelo contexto social de desprezo aos valores e a ética. A sociedade está submetida ao excesso de priorização do poder e do dinheiro a qualquer preço.

O chamado neoliberalismo muito contribuiu para o quadro atual, pregando a redução do Estado e a entrega do poder efetivo aos conglomerados financeiros e tecnológicos, e as megaorganizações da mídia. Esse plano determinou uma nova ordem mundial que atualmente rege as relações internacionais, concorrendo para a assustadora concentração da renda e o consequente aumento da pobreza.  A concepção envolve os ocupantes dos órgãos estatais. Nesse diapasão o compromisso com a Justiça baseada em valores éticos desparece.

Representante desse ponto de vista é o professor Steven Kaplan, da Universidade de Chicago, que em recente entrevista à “Folha de São Paulo” assegurou: “dinheiro é mais importante que mãe, porque uma empresa sobrevive sem ela, mas não sem o caixa”.

É uma incompreensão dos fundamentos do liberalismo, este não sobrevive sem um Estado forte baseado em valores éticos. A querela entre Janot e Gilmar é exemplificativa de como funcionam os bastidores dos poderes.  Os seus ocupantes estão sujeitos a interesses e paixões.  Onde está a verdade? A resposta é de Kelsen no livro “A Ilusão da Justiça”: cada um tem a sua. O Brasil anseia por dirigentes com compromisso institucional.

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