Lima Barreto é considerado um escritor pré-modernista, dentre outras razões, pelo seu estilo irreverente e crítico, ainda não desenvolvido no Brasil da primeira década do século XX. Neto de escravos alforriados, sentiu na pele os preconceitos e discriminações de uma sociedade que posava de liberal, mas na prática, agia de modo contrário. Afilhado do Visconde de Ouro Preto que lhe proporcionou estudar no Pedro II, o melhor colégio daquele tempo, e na Politécnica onde cursou até o terceiro ano de engenharia. Foi forçado a deixar os estudos em razão da doença do pai, ficando responsável pela manutenção e criação dos irmãos. Fez concurso para o Ministério da Guerra, opção inevitável na época, dividiu-se entre o serviço público, o jornalismo e a publicação de livros. Dono de obra não muito extensa, mas primorosa, onde se destacam: Triste Fim de Policarpo Quaresma, Recordações do Escrivão Isaias Caminha, este último considerado de traços autobiográficos. O seu primoroso conto “O Homem que Sabia Javanês” é considerado o retrato do Brasil do início do século passado. Conta a estória relatada por Castelo ao amigo Castro em uma Confeitaria grã-fina do Rio.
Entre goles de uma cerveja revive os sucessivos golpes que deu para promover sua ascensão de bacharel a membro do corpo diplomático e integrante de respeitadas associações científicas internacionais. Vivendo de pequenos expedientes, leu o anúncio no Jornal de Comércio de que se precisava de um professor de malaio. O suficiente para se fazer como tal. Mal sabia a localização da ilha de Java, a principal do arquipélago da atual Indonésia. No passado uma possessão holandesa. Ao interessado, o Barão de Jacucanga disse que houvera aprendido com o pai javanês, tripulante de navio mercante, aportara em Canavieiras na Bahia, onde ficou e prosperou.
O Barão explicou: pretendia cumprir um juramento que fizera à família, traduzir o livro publicado em javanês. De conversa em conversa, sem ter demonstrado em nenhum momento o domínio do javanês, as portas lhe iam sendo abertas para o mundo da política, dos negócios, da diplomacia, até atingir o topo a que chegara. O autor critica os costumes de uma sociedade que se diz letrada e, no entanto, é facilmente enganada, aparentemente por meio de golpes toscos e bobos.
O malandro não é o homem do povo, como depois é caricaturado na música popular, de navalha e lenço no pescoço, e sim, o bacharel, que de anel no dedo, dá golpes e pulos para se dar bem na vida a qualquer preço.
O que mudou de lá para cá? Mudando o que deve ser mudado, pouco ou quase nada. Continuamos a acreditar em “salvadores da pátria”, apesar de o golpe ser conhecido, todos entram na mesma conversa fiada. O que dizer dos planos mirabolantes para enriquecer, aproveitando a ingenuidade da população. Um imigrante húngaro, Peter Kellemen, nos anos sessenta do século passado escreveu o livro “Brasil para principiantes” descrevendo como é fácil enganar os brasileiros prometendo lucros fáceis e repentinos. Estão aí as tais pirâmides para confirmar as observações do imigrante. Ele próprio, para testar suas teorias, antes de deixar o país, lançou uma espécie de “carnet fartura”. O golpe deu certo. Ganhou muito dinheiro, deixou o livro como prova de sua acurada e esperta análise sobre a alma boa e generosa da população brasileira. Ao dar o golpe tinha a garantia da impunidade. Muitas fortunas assim se fizeram neste país.
Decorridos quase cem anos da morte de Lima Barreto dá-se a repetição do mesmo. Não se pode dizer que seja carma cultural, pode ser este vencido pelo aprendizado de lições, como a dada pelo escritor carioca, só postumamente reconhecido.